Tudo tem política, inclusive o que você gosta

Paulo H.
7 min readJun 9, 2020

Mas então,

No pós-guerra, o Japão só tinha uma coisa na cabeça: se reerguer e crescer o máximo que pudesse, não importava o custo. Infelizmente, como descobriu-se alguns poucos anos depois, o custo acabou sendo bem alto:

Uma em cada cinco pessoas na faixa dos 40 anos que viviam em Tóquio apresentavam problemas de bronquite crônica. 65% reclamavam do mau cheiro da cidade, dos esgotos, dos rios. Em torno de 57% sofria de irritações na garganta e 29% de tosse constante.

Nesse mesmo período, 42 pessoas morreram e cerca de cem ficaram gravemente doente por envenenamento por mercúrio. E, somente em 1969, em torno de um milhão de japoneses sofreu algum tipo de acidente pela falta de urbanização nas cidades, com poucas calçadas e áreas livres para os pedestres caminharem. Áreas verdes e rios sofriam com a poluição, indústrias e governo não respeitavam qualquer regulação se isso indicasse crescimento menor, e até hoje há associações de pessoas que buscam algum tipo de compensação pelos danos causados pela poluição. Foi nesse cenário que em 1966 nasceu um personagem que é considerado o primeiro herói "ecológico" da história:

Ultraman pode até hoje ser para muito apenas uma série super divertida SWASH PEW PEW PEW mas no fundo as histórias tratavam de temas que estavam se tornando importantes para a população japonesa, com monstros que eram gerados pela engenharia humana ou que despertavam pelo crescimento desenfreado da humanidade. Mesmo alguns aliens traziam em si uma mensagem ecológica, como os Baltans, que destruíram o próprio planeta com experiências nucleares e acabaram descobrindo na Terra um lugar propício para viverem. Com 2.3 bilhões de Baltans, a escassez de recursos e a dominação de uma raça por outra era discutida. Cabe lembrar, um dos motivos para Ultraman poder ficar na Terra por apenas três minutos também era a poluição, que limitava a quantidade de luz absorvida.

A séria do homem ultra foi um sucesso, e com isso diversas outras séries pegaram carona nesse mix de entretenimento e mensagem social, a maioria com resultados abaixo do esperado

“Planeta: Terra. Cidade:Tóquio. Como todas as grandes metrópoles do planeta, Tóquio se encontra hoje em desvantagem na sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição. E, apesar dos esforços de todo o mundo, pode chegar um dia em que a terra, o ar e as águas venham a se tornar letais para toda e qualquer forma de vida. Quem poderá intervir? Spectreman!!!”

O que isso quer dizer? Que Eiji Tsuburaya era de esquerda? Ele era feminista? Tomava leite de soja? Era adepto do poliamor? Provavelmente não. Mas tanto ele quanto os roteiristas da série fizeram uma leitura do momento em que o Japão vivia e perceberam que podiam aproveitar para passar uma mensagem nas histórias que contavam. E essa mensagem era política, quer você a aceite como parte da obra ou não. A crítica ao governo e ao capitalismo desenfreado estavam ali, mesmo que para você, a série se resumisse a SWASH PEW PEW PEW.

Eu poderia escrever laudas e laudas sobre como obras culturais trazem em si mensagens que são, em sua essência, políticas e dentro de um contexto da época: Ghost in the Shell foi criado no boom do desenvolvimento digital, e mostra a visão do autor sobre o que isso poderia significar no futuro. Hokuto no Ken faz parte de um contexto cultural do início da década de 1980, e dá para encontrar centenas de mensagens políticas em meio aos YATATATATATA ali. O Homem-Aranha na década de 1970 falava sobre o impacto das drogas entre os jovens, sobre a guerra do Vietnã, sobre protestos nas universidades, e tornou-se famoso por mostrar Peter Parker conversando com personagens pretos, ou até mesmo pretos em posições hierárquicas de destaque. E por aí vai.

O problema quando se tenta discutir política em obras culturais (ou, mais especificamente, política em obras nerds) é que existem uma série de equívocos nas premissas básicas e nos argumentos da discussão:

  • O entendimento (provavelmente criado pela overdose de séries como He-Man e She-Ra) de que a série só tem algum tema político envolvido se os personagens olham para a tela (ou para o leitor) e falam "Olá amiguinhos, no programa de hoje aprendemos com o Esqueleto sobre mais-valia e sobre a importância de taxar os mais ricos", ou "Olá amiguinhos, no capítulo de hoje o Munn-Ra tentou roubar a Espada Justiceira e acabou levando dois tiros na cabeça pq como sabemos bandido bom é bandido morto" — ou seja, só existe alguma política se é explícita;
  • O entendimento de que se o autor não foi explícito em sua visão política dentro da obra, ela se torna uma obra apolítica. Ou ainda, a idéia de que autores, roteiristas, diretores e todo o resto da equipe envolvida na produção da obra não possui algum viés político;
  • O entendimento de que, se você não enxerga uma mensagem por trás da obra, ela não existe. Ou, se você enxerga uma mensagem mas outra pessoa enxerga uma mensagem diferente, ela está claramente errada.

Por fim, há um problema maior: o equívoco de que política é apenas política se se trata de um assunto em voga no momento (racismo, fascismo, feminismo, etc.) e que existe obrigatoriamente um "lado" em cada um desses assuntos, em que a pessoa precisa estar 100% alinhada ou não faz parte do lado. Uma série como Ultraman não pode fazer críticas a certos aspectos do capitalismo e ser "de direita", já que criticar capitalismo é coisa de esquerdista gayzista. Ou algo assim.

Buscando no Google, há definições para o que é política para os mais diversos gostos e fins. Mas no meu entendimento, política é o conjunto de idéias e crenças que eu tenho com relação ao meu eu individual frente à sociedade. Ou seja, a forma como eu enxergo os direitos que <insira uma minoria aqui> devem ou não ter e o quanto eu estou disposto a prover do meu tempo/esforço para que esses direitos sejam aplicados de forma geral, é política. A forma como enxergo como meu dinheiro deve ser gasto é política. Se eu trato pessoas em hierarquias diferentes de formas diferentes, isso é uma atitude política. Se eu decido usar transporte público ao invés de comprar um carro, isso é uma atitude política. A atitude da moça do RH do meu emprego em 2015 que reiniciava a rede toda da empresa pq o celular dela não estava conectando ao WiFI, tinha uma visão sobre convivência em grupo e prioridades, e essa era uma visão política. Enfim: cada atitude que eu tomo reflete a visão que eu tenho sobre o mundo, e se eu crio uma história, com personagens interagindo entre si, é perfeitamente natural que eu coloque nessa história parte do que eu considero certo e errado, parte do meu entendimento político de como a sociedade deve agir ou funcionar.

(percebam que eu não estou colocando aqui política como direita e esquerda somente, o que pra mim é um equívoco gigante e só esconde uma área cinza gigante existente na maioria da população)

Quando falamos de política, é impossível não falar de conservadorismo, que é uma visão política que prega a manutenção e prevenção de instituições, hábitos, rituais e comportamentos dentro da sociedade. Afinal, se algo funciona pra mim, por qual motivo eu tentaria mudar?

E quando falamos de cultura nerd, é impossível não falarmos do nerd em si. É quase impossível não encontrar uma definição de nerd que não descambe para estereótipos rasos ou que não confunda nerd com "consumidor de cultura pop", mas eu gosto de uma definição existente no livro Otaku Spaces: a de que o nerd/otaku são pessoas consideradas fãs extremistas de um determinado assunto, esporte, programa de televisão, hobby e etc. Uma pessoas que gosta de canetas pode ter ali em sua mesa uma coleção de canetas, sua caneta preferida, uma caneta que recebeu de presente, etc. mas o assunto morre ali na normalidade. O nerd extrapola esse conceito catalogando, categorizando, ranqueando e parametrizando canetas, muito provavelmente chegando ao ponto da obsessão, se isolando da sociedade para que seu catálogo de canetas esteja o mais completo possível.

Por fim, é impossível não notar uma intersecção entre os dois grupos: se a minha única certeza na vida são os catálogos que criei, se eu consigo listar de cabeça todas as revistas do Homem-Aranha em que o Homem de Ferro aparece, ou tenho decorado todas as falas do episódio 38 de Ultraseven, eu preciso que essas informações permaneçam inalteradas. Preciso que as conversas que mantenho com outros nerds permaneçam dentro do meu campo de conhecimento catalogado. Preciso garantir que os hábitos, rituais e comportamentos inerentes à minha paixão permaneçam intocadas, e portanto conservadas. Sair disso me tira da minha zona de conforto.

E se isso exige que óbvias mensagens progressistas sejam ignorada ou apagadas dentro da obra que amo, que assim seja, certo?

Errado.

A verdade é que não importa o quanto você se debata contra, a mensagem existe nessas obras, seja diretamente ou indiretamente. Você pode lutar o quanto quiser para Ultraman seja apenas uma série SWASH PEW PEW PEW mas ela foi criada tendo como base os problemas de saúde causados pela poluição e pela exploração desenfreada do meio ambiente pelo capitalismo. A mensagem está lá, e não há como você impedir outras pessoas de a enxergarem, concorde você com ela ou não. E não há como impedir que seja mensagem seja absorvida, debatida e repassada pra frente.

Perceba que estou por enquanto citando apenas Ultraman, mas é possível substituir isso por qualquer outra obra, para o bem ou para o mal. Pessoalmente, considero Capitão Harlock uma obra sensacional, mas seria loucura negar a óbvia misoginia presente nas falas do protagonista, colocadas ali pelo seu criador. E eu poderia a qualquer momento reescrever todo o texto acima, trocando Ultraman por Capitão Harlock e mostrando que a mensagem está ali, e qual o contexto por trás da existência da mensagem.

Por fim, é um direito seu não querer misturar games, quadrinhos, animes, séries ou qualquer outra coisa com política, ainda mais se essa é sua válvula de escape para problemas maiores. Mas esse é um direito seu e seu apenas. A tentativa de coibir pessoas de enxergarem essas mensagens políticas e debatê-las e de até mesmo fazer com que pessoas parecidas com você enxerguem essa mensagem, não te torna um paladino da justiça contra a lacração ou algo do tipo.

Só transparece para todos à sua volta a sua incapacidade de absorver o que você consome e o quão vazia é a sua experiência.

A política está em tudo o que a gente consome, concorde você com ela ou não. Gurren Laggan não tem uma linha de diálogo que possa ligá-la à visão de esquerda ou direita, mas mostra um grupo lutando pelo progresso contra um outro grupo que acredita que o correto é manter tudo como está, mesmo que para evitar um mal maior.

E isso é política.

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Paulo H.
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Written by Paulo H.

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