Duzentos e cinquenta mil moedas

Paulo H.
4 min readMay 4, 2020

Algumas semanas depois do tsunami de 2004, que matou em torno de 228 mil pessoas, Peter David (escritor de quadrinhos famoso pela fase no Incrível-Hulk, Supergil, Homem-Aranhe e outros) escreveu algo em um blog sobre o acontecido e promoveu um pensamento simples mas que me pegou na época:

"Imagine uma moeda de 1 centavo. Empilhe milhares dessas moedas, até alcançar o número de mortos. Agora, imagine que cada uma dessas moedas é uma vida. Alguém que nasceu, cresceu, amou, foi amado, sonhou, chorou, gargalhou, viveu e tinha potencial de viver muito mais. Cada uma dessas moedas é especial e única. Agora imagine que do nada todas essas moedas… desapareceram. Imagine tudo o que foi desfeito, o potencial que poderia ser alcançado, tudo o que poderia ter acontecido com essas pessoas e tudo o que elas ainda poderiam ter feito de bom."

Não era bem isso, minha memória provavelmente me engana, já que infelizmente não encontro mais o texto original. Mas me lembro do quanto aquilo me marcou: é muito fácil olharmos números gigantes e esquecer que cada um desses números era uma pessoa. Uma vida, com potencial para fazer coisas maravilhosas, mas que se perdeu. Ela não vai mais estar ali na mesa de bar, no almoço de família, no futebol do final de semana, no aniversário dos amigos. Não vai mais pedir um abraço pro pai antes de dormir ou abraçar o filho e dizer que o ama. O telefone nunca mais vai tocar com o nome ou rosto dessa pessoa aparecendo na tela.

Penso nisso toda vez que vejo a aba do Google com os dados do Covid-19. Semana passada, batemos o número de mortos do tsunami de 2004. E na quinta passada, descobri que a irmã de uma ex-estagiária faleceu de um AVC. Pode ter sido por causa do Corona vírus. Pode ter sido por outra coisa. A notícia no jornal é de que não havia espaço nos hospitais para ajudá-la. Conversei pouco com a Karinna, mas sei que era uma pessoa que não merecia esse fim.

As duas informações se entrelaçam. Os quase 250.000 mortos na tela não são apenas números, são pessoas. Irmãos de alguém. Filhos de alguém. Pais de alguém. Amantes de alguém. Não estão mais aqui. Penso nisso enquanto recebo outros relatos de conhecidos e não tão conhecidos assim que morreram ou perderam pessoas próximas.

Não por acaso, enquanto ainda pensava se publicava ou não esse texto, recebi o link de um site que tenta transformar os números em pessoas: o Memorial Inumeráveis é uma contribuição sensacional para a história da pandemia no Brasil, e de todos os que se foram.

Como já disse dezenas de vezes, minha infância foi lendo histórias fantásticas. Heróis. Heróis que acreditam no certo. Heróis que inspiram. Heróis que nos estimulam a ser como eles, a fazer o certo, salvar vidas, ajudar o próximo.

Everybody loves a hero. People line up for them…cheer them…scream their names. And years later, they’ll tell how they stood in the rain for hours just to get a glimpse of the one who taught them to hold on a second longer. I believe there’s a hero in all of us…that keeps us honest…gives us strength…makes us noble…and finally allows us to die with pride, even though sometimes we have to be steady and give up the thing we want the most — even our dreams. Spider-Man did that for Henry and he wonders where he’s gone. He needs him.

Confesso que em tempos de notícias tão espinhosas, alguém que nos últimos meses tinha que se esforçar até para sair da cama em alguns dias pode já deveria ter perdido o pouco da fé que resta. E admito, a tentação é grande, ainda mais quando a ansiedade bate picos formando um milhão de cenários diferentes na cabeça. Confesso que não julgo muito quem já se deixou levar pelo desespero no meio disso tudo.

Mas, novamente: heróis nos inspiram a fazer o certo. E há uma certa confusão nesse momento sobre o que é o certo ou não, com alguns realmente acreditando que o ideal ainda é discutir se está certo em uma discussão na internet, ou que o certo é apontar dedos para os que negam ou tripudiam das mais de sete mil histórias encerradas só no nosso país. Mas, se alguém me perguntasse o que deveríamos estar focados em fazer, a resposta seria simples: nós salvamos vidas. Cada uma conta. Cada história que evitamos encerrar é um prelúdio para algo épico. Cada pessoa que podemos ajudar é alguém que evitamos transformar em estatística.

Deem gorjeta para entregadores. Prefiram comerciantes e produtores locais. Conversem com familiares e tente sempre conscientizar e acalmar. Mesmo o simples ato de ficar em casa o quanto puderem pode fazer mais do que você imagina. Protejam os que não podem se cuidar sozinhos. Honrem a história dos que se foram com suas ações, e deixem a mesquinharia e cinismo típico da internet de lado só por algumas semanas.

Não são números, são pessoas. Cada vez que impedimos esse número de subir, ao nosso modo, salvamos a humanidade.

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Paulo H.
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Written by Paulo H.

WordPress Optimization Specialist | 15+ Years of Expertise as Tech Lead, Project Manager, and Professional Solution-Maker - I also cook

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